segunda-feira

O DOIDO DO Nº 63


Se você é uma das pessoas que passa ou já passou pela Júlio Pereira que faz esquina com a avenida São Paulo-Rio, no centro do bairro de Itaiquara, certamente identificará o local. Os moradores da Júlio Pereira, assim como a maioria no bairro, jamais servirão como exemplo de amor à natureza. É uma rua fria, sem vida, com um ou outro vaso de comigo-ninguém-pode esquecido num canto de alguma garagem. Pássaros? Só pardais. Nas calçadas ainda se vê restos de árvores que a prefeitura plantou no ano passado.
No entanto, se você caminhar em direção ao final da rua, perto da linha do trem, você vai se deparar com uma visão que certamente encherá seus olhos de admiração, um verdadeiro oásis, um lindo jardim com pequenos arbustos, samambaias que descem dos vasos como água de cachoeira, uma variedade enorme de flores e pasmem, periquitos, canários, e principalmente beija-flores voam livres no jardim.
Para quem já conhece o lugar sabe que ali é o número 63 da Júlio Pereira, o que talvez nem todos saibam, é que ali morava um doido.
Alguns moradores mais antigos da rua ainda se dividem quanto ao verdadeiro nome do morador do 63, eu, quando vim morar nesta rua no número 59, já encontrara o mesmo batizado pela alcunha de doido. A principio eu evitava usar este tipo de tratamento para com alguém que sequer conhecia, mas com o passar do tempo e dos acontecimentos, também adotei tal qual os demais moradores o hábito de chamar o morador do 63 de doido, e isto porque cheguei a conclusão de que nem o próprio se importava de ser chamado assim. Constatei isso ao presenciar uma cena que envolveu nosso personagem.
Era um domingo e alguns meninos jogavam futebol na rua, o atrevimento por estarem jogando em frente ao temível endereço se devia ao fato da rua estar cheia de moradores que, como eu, aproveitava o dia para lavar o carro e falar das últimas novidades, principalmente relacionadas ao futebol. Em determinado momento percebi que a bola que os meninos jogavam caiu dentro do quintal do 63, parei com o que estava fazendo e comecei a observar o desfecho do acontecimento, percebi a indecisão dos meninos, era uma bola nova, mas como recupera-la? Nem o mais valente deles se atreveria a incomodar o doido. Se ao menos a Angelina estivesse ali...
Depois de alguns minutos de confabulações e discussões, decidiram que todos executariam a ingrata tarefa, aproximaram do portão tão juntos que pareciam grudados, e como um coral afinado, gritaram chamando pelo dono da casa:
_Senhor doido! Senhor doido! Pega a bola pra nós? Perceberam que não foram ouvidos, ainda mais porque lá de dentro da casa vinha um som de melodia, o doido estava ouvindo música. Tentaram outras vezes e em cada nova tentativa gritavam mais alto, repentinamente a música parou, os meninos mais próximos do portão se afastaram, e uma enorme expectativa aguçou minha curiosidade, finalmente eu veria o doido do 63.
Dezenas de pensamentos atropelaram minha mente que tentava imaginar como seria esta criatura tão temida e tão falada pela vizinhança. Quando ele apareceu, demorei em acreditar no que meus olhos viam, não podia ser ele! Estatura mediana, magro, com uma palidez que impressionava, não fosse pelo grisalho da cabeça eu diria, pela distancia em que me encontrava, que olhava para um menino.
Ele caminhou em direção da bola com uma estranha calma, os meninos em silêncio esperavam, inventei um pretexto para me aproximar um pouco mais e percebi que ele mancava de uma perna, minha decepção aumentou, ainda por cima é aleijado pensei. Os meninos receberam a bola e agradeceram, ele não respondeu e voltou pra dentro de casa.
Era noite e eu ainda pensava no ocorrido pela manhã, pensava que se não tivesse presenciado aquelas cenas tudo estaria bem , mas porque cargas-d’água eu não conseguia esquecer aquele endereço?
Em meus pensamentos eu avistava a casa com o jardim bem cuidado, aquele homem tão temido porem de aparência tão frágil, e no ar o som de melodias.


Nos dias seguintes me dediquei a cultivar um jardim. Comprei terra fértil, pó de osso, semente de flores variadas e um duende de gesso pra colocar no meio do jardim, dizem que dá sorte!
Todas as tardes, após chegar do trabalho eu molhava o jardim. Poucas sementes germinaram e logo morreram, vizinhos entendidos disseram que era excesso de água, morreram afogadas. Uma nova plantação de sementes e nova decepção, os vizinhos disseram que era falta de água, morreram de sede.
Uma análise dos acontecimentos e uma decisão, desistir jamais, eu teria um jardim nem que pra isto tivesse que virar doido. Optei por plantar sementes de flores que se não eram tão bonitas eram mais resistentes, como as margaridas, os cravos, e alguns tipos de beijos.
As novas medidas deram resultados, algumas sementes brotaram e chegaram a atingir o tamanho ideal de mudas que seriam plantadas em lugar definitivo, mas aí vieram as formigas...
Num sábado pela manhã após destruir o formigueiro, eu preparava novamente a terra quando alguém me chamou, olhei em direção ao portão e deparei com a menina Angelina. Ela me perguntou se eu estava fazendo um jardim, respondi que sim, então ela disse que meus esforços seriam inúteis se eu não mudasse o lado do jardim. Se até aquele momento eu não estava dando muita atenção ao que a menina me dizia, as coisas mudaram de figura e perguntei-lhe o por quê de tal afirmação. Ela me explicou que o lado que eu escolhera para fazer meu jardim batia muito sol, e ventava também, as plantas não gostavam disto. Fazia sentido, mas era a afirmação de uma criança, então perguntei:
_ E quem lhe ensinou isto?
_ Foi um amigo meu, ele entende de jardim, conhece as necessidades das plantas e sempre me diz:_ Amiga Angelina, se você quer conhecer as necessidades de uma planta, tem de perguntar a ela o que lhe está faltando, disse as últimas palavras seguidas por um tchau e se foi, equilibrando-se com graciosidade sobre seus patins. Resolvi que deveria conquistar a amizade da menina.


Deu certo! Longe de ser ainda o meu sonhado jardim, todas as sementes germinaram, até uma muda de orquídea e outra de rosa branca exibiam brotos que indicavam que elas estavam vivas e estavam bem. Os fracassos anteriores me ensinaram muita coisa, e a beleza do meu jardim agora dependeriam das escolhas das flores e dos cuidados que eu teria com elas.
Numa tarde em que espalhava pedaços de cascas de batatas e de ovos sobre os canteiros, alguém me falou:
_Vejo que o senhor mudou o lado do jardim. Era Angelina.
_É, você tinha razão, acho que agora vou ter um jardim! Disse isto me aproximando da grade do portão, não queria perder a oportunidade de um diálogo, afinal, foi graças a ela que meu projeto de jardim começava a dar certo.
_Você é uma menina inteligente e parece entender muito de jardim!
Ela gostou do elogio, o mesmo teve o efeito de mostrar que ela era uma menina falante e espontânea. Me contou que gostaria de ter um jardim também, mas seus pais eram muito ocupados e não queriam ela mexendo com terra, as coisas que sabia aprendeu com o senhor Gabriel.
_ E quem é este senhor Gabriel ?
_ É o morador do 63!
_ Ah! O doido...
_ Ele não é doido! As pessoas o chamam assim porque não o conhecem direito! Percebi que meu comentário foi infeliz e tratei de me desculpar, arrependido perguntei:
_ Por quê as pessoas o chamam de doido?
_ É porque ele fala com as plantas! As pessoas pensam que ele está falando sozinho e por causa disto é doido.
_ Mas você não acha estranho uma pessoa falar com plantas?
_ Não! Ele é uma pessoa solitária, gosta muito de plantas, dos pássaros e de animais...
_ Mas me parece que ele não possui nenhum tipo de animal. Comentei.
_ Se ele possuir animais não poderá ter um jardim e os pássaros não viriam visitá-lo!
_ Você gosta muito dele não é?
_ Gosto sim, ele me ensina muitas coisas, agora estou aprendendo com ele a tocar violino.
Antes de ir embora Angelina me pediu segredo sobre nossa conversa, disse que se o pai dela soubesse que ela freqüentava a casa do senhor Gabriel, certamente ele a proibiria de continuar, depois, sorrindo me falou que se eu queria ter um jardim bonito deveria conversar com as plantas. Acho que ela estava só brincando, eu jamais faria isto!

O morador do 63 só encontrava simpatia na menina Angelina. Os demais moradores o tinham como o mal da rua, os comentários circulavam na vizinhança com a justificativa de que suas preocupações eram para com a segurança dos filhos.
__ Nunca se sabe o que uma pessoa destas pode fazer, a gente vê todos os dias na televisão casos de pedofilia, até de sequestros, rituais de magia negra, venda de orgãos, passou um caso destes outro dia. Deus nos livre! Dá arrepios só de pensar.
Os comentários acabavam sempre com a afirmação de todos de que aquele homem representava um perigo para as crianças da rua.
__ Dias atrás sumiu o gato da dona Lazinha, quem garante que não foi o doido que deu sumiço no bichano?
__ E se é capaz de fazer isto com um gato, o que não faria com uma criança? Eu não acreditava em nada destas coisas, ouvia para demonstrar simpatia, percebi que tudo ficava só na conversa, e as coisas que diziam não acarretavam conseqüências que causassem preocupação. O doido dificilmente era visto, e se os males que recaiam sobre nós poderiam ser atribuídos a ele, melhor, foi uma maneira que encontramos para explicar estes males com uma conclusão lógica, culpa do doido!.

Em muitas vezes que o por do sol trazia uma noite silenciosa, era possível ouvir os acordes quase sempre tristes, arrancados de um violino que eu sabia vinha do número 63. Um som melancólico, de contagiante nostalgia, extraído quem sabe das páginas de uma serenata que forçava a gente a pensar em coisas tristes, nestes momentos, eu aumentava o volume da televisão para não ser contaminado por sentimentos de tristeza.
Se a música do 63 incomodava os demais visinhos eu não sabia, no dia seguinte os comentários eram sempre do tipo:_ O doido ouviu música ontem à noite! Mas era só isto.

Dia de finados. Eu voltava da padaria onde fui comprar pão e leite, a rua estava deserta pois era cedo, ao abrir o portão ouvi passos e o que vi me assustou a ponto de derrubar o saco de pães. Trajando um terno preto, o doido passava carregando um ramalhete de flores que identifiquei como sendo do seu jardim, não o cumprimentei pois ele sequer olhou pra mim. Entrei no quintal mas fiquei no portão, vendo-o se afastar puxando uma perna até que desapareceu no final da rua.
Por alguns instantes fiquei pensando no quanto era estranha aquela criatura, estranha e solitária. Isto me lembrou que a casa agora estava vazia, e comecei a imaginar como ela seria por dentro. As janelas e portas sempre fechadas dificultavam os olhares curiosos. Como seriam os móveis, a televisão talvez fosse portátil já que não se avistava antena externa, teria ele algum rádio? Difícil de saber, pois o único som que vazava de dentro da casa eu sabia agora que era o do violino. Nada naquela casa refletia uma luz sobre o caráter de seu dono, mas uma coisa era certa, doido ou não ele gostava de seu jardim. Seria o cuidado com suas flores fruto de uma mente doentia? Pergunta sem resposta, que tornava aquele homem ainda mais misterioso pra mim.

Com o fim da primavera se aproximando chegaram às chuvas, eu aproveitava parte de um domingo para limpar algumas calhas quando ouvi gritos que me fizeram acreditar estar acontecendo algum tipo de confusão na rua. De uma das janelas verifiquei que algumas pessoas corriam, pude até identificar o senhor Eduardo, morador do 58, gritei-lhe perguntando o que estava acontecendo e ele sem parar de correr respondeu que o doido tinha pegado a menina Angelina, não entendi muito bem, e já era tarde para ouvir mais explicações, seu Eduardo já estava longe. Corri em direção a rua e percebi que em frente ao número 63 se aglomeravam meus visinhos, juntei-me a eles e comecei a fazer perguntas, mas as respostas me deixava confuso, todos estavam nervosos, o pouco que consegui entender falava que alguém tinha visto o doido levando Angelina pra dentro de casa e avisou o pai dela, perguntei se ele estava levando ou se ela estava indo com ele, ninguém entendeu, e fiquei sem resposta.
O espanhol do açougue, pai da menina, era o mais nervoso de todos, vendo que seus gritos chamando pelo doido não surtiam efeito passou para a ação, sendo acompanhado por muitos, a grade de ferro não ofereceu nenhuma resistência para aquela multidão sem controle.
O estranho de tudo era que a casa permanecia fechada, como se aquela balbúrdia toda nada tivesse a ver com ela, isto parecia enfurecer ainda mais aqueles homens que após pisotearem o jardim aproximaram-se da porta, alguns portavam pedaços de ferros arrancados da grade. Quando a porta foi derrubada, eu praticamente fui jogado pra dentro da casa por aquela multidão sedenta de justiça. Os acontecimentos a seguir se desenrolaram muito rápido, mas as cenas que presenciei jamais seriam apagadas de minha mente.
Duas poltronas lado a lado, em uma delas a menina chorando tentava dizer algo que ninguém ouvia, na outra, o doido estava sentado calmamente, em silencio, olhar perdido, ausente daquele lugar, não esboçou nenhuma reação quando foi arrancado do móvel e levado pra longe do olhar da menina. Eu estava atônito, sem forças para esboçar qualquer tipo de reação em favor daquele desgraçado, e mesmo que isto fosse possível, o barulho provocado por um corpo que vai ao chão me mostrou que era tarde demais. A pobre criatura aceitou passivamente o seu destino como se fosse um castigo merecido.
Dever cumprido, a multidão vai embora. Resolvo permanecer por alguns instantes dentro da casa. Uma ironia, ali estava eu matando a minha curiosidade, sem ser convidado eu invadia a privacidade do doido.
A casa era simples, sala, cozinha, e um dormitório. Da sala se avistava a cozinha, uma mesa com quatro cadeiras, um fogão elétrico, armário, e pia. A sala era pequena, além das duas poltronas, uma mesa e uma estante com muitos livros, me interessei pela leitura do doido, identifiquei poucos escritores nacionais, e estranhei a presença do livro de contos Borboletas Azuis, de um autor brasileiro desconhecido. Escritores russos como Ivan Turgueniev, Dostoievski e Tolstoi, franceses como Voltaire, Victor Hugo e Abade Prévost, dominavam a maior parte da coleção. O dormitório era de casal, uma cama pequena tipo berço ocupava um dos cantos, no outro lado um tapete, onde o violino agora despedaçado repousava ao lado de manchas de sangue. Quando estava pra sair avistei um quadro na parede, talvez a única coisa que agora estivesse intacto na casa. No quadro um retrato amarelado de família, com a mãe, uma bonita mulher de cabelos longos segurando nos braços uma menina linda, de cabelos com cachos dourados, o pai, um homem jovial abraçava orgulhoso os ombros da esposa. Todos sorriam!
A policia apareceu chamada que foi por um visinho, fez perguntas sobre os acontecimentos e foram embora levando o corpo.
A menina Angelina foi levada para exames médicos, nunca soubemos os resultados, ela não voltou mais a morar na rua pois sua família mudou pra Campinas.


Uma semana após o ocorrido, uma pessoa que se identificou como irmão do morador do 63 veio do sul para tratar de assuntos relacionados ao imóvel. Fui o primeiro morador a ter contato com ele, uma pessoa simpática, ofereci meus préstimos, ele veio de longe e não conhecia ninguém por aqui. Pesaroso ele me falou da falta de comunicação com o irmão, as cartas que escreveu não tiveram respostas e agora só restava lamentar o destino do mesmo. Segundo ele, Gabriel foi um homem muito feliz junto da esposa e a filha. Um acidente de carro tirou a vida das duas e o deixou sem uma perna, obrigando-o a usar uma prótese.
Ele nunca se perdoou por isto, era ele quem dirigia o carro.
__ Após o acidente ele nunca mais foi o mesmo, se afastou de tudo e de todos, a aposentadoria por invalides cobria as despesas de sua solitária existência. Concluiu dizendo que o mais difícil era aceitar que seu irmão tenha merecido um destino tão cruel.

Aos poucos a Júlio Pereira retorna pra sua rotina. Temos um novo visinho, um vereador que está fazendo fortuna rapidamente na política comprou a casa para demolir e construir um grande sobrado. O senhor Eduardo do 58 chegou a comentar que nossa rua agora estava abençoada, seus moradores agora são todos gente do bem.

Meu jardim está cada dia mais bonito, só nesta manhã eu contei a visita de cinco beija-flores voando sobre ele.

FIM

Um comentário:

  1. Eu li esta história no livro que você, tão gentilmente, me enviou de presente.
    Um moço triste, Uma história triste. Julgamentos e condenações sumárias para um homem já morto dentro de si.
    Muito triste. Vizinhos algozes, sedentos. Enquanto isso, o beija-flor continua beijando as flores.... Eh, o mundo continua nesta ciranda doida.
    Abs!

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