Introdução
Sentei-me num banco em frente a catedral da Sé e esperei. Enquanto esperava admirava a brincadeira do vento com as folhas das árvores, alguns pombos perseguiam insetos, então ele apareceu. Passou quase rente aos meus pés, pude sentir o cheiro da miséria que se desprendia de seu corpo sem higiene e de suas roupas sujas e maltrapilhas. Olhava fixo para o chão, mas pude reconhecer alguns traços de sua fisionomia que me fizeram acreditar que aquele menino era, sem dúvida nenhuma, quem eu procurava. Esperei algum tempo antes da abordagem, queria olhá-lo e tirar algumas conclusões.
Ele se acomodou em um dos degraus da escadaria da igreja ficando de costas para a porta de entrada da casa de Deus, mas parecia não se dar conta disto. Resolvi me aproximar, mas antes que o fizesse alguns meninos apareceram e foram em sua direção. Conversaram, sorriram entre uma brincadeira e outra e se foram, deixando-o só. Aproximei e perguntei o seu nome, ele sequer me olhou para responder que não era da minha conta. Falei que era sim, pois estava ali a pedido de seu pai que era meu amigo.
Quando o menino ouviu falar de seu pai, levantou o rosto e pude ver em seu olhar um brilho intenso de alegria. Por alguns instantes ele me encarou, seus olhos procuravam na minha imagem a verdade do que eu dissera.
__ "Eu não conheço o senhor como sendo um dos amigos de meu pai, o que deseja de mim?"
Percebi em suas palavras os resquícios de uma educação que sempre marcou a vida de seu pai, o respeito pelos mais velhos ao me chamar de senhor, e a maneira de falar que só possuem os portadores de uma jóia rara, uma família.
Convidei-o a tomar café em um dos bares da praça, naquela hora, por volta das onze, ele deveria estar com fome, mas agradeceu-me recusando. Sentei-me a seu lado tentando criar um clima de intimidades. Percebi a batalha travada por ele para não ceder a tentação de confiar em mim.
__ "Como está meu pai?" Perguntou-me.
Respondi que estava bem, omitindo, ou pelo menos tentando mascarar a verdade.
__ "Quando poderei vê-lo?"
Sua pergunta me incomodou, o que eu menos queria naquele encontro era sair dele com o aperto no peito que sentia naquele instante, por isso menti dizendo que em breve ele o veria.
Para evitar novas perguntas comecei a falar sobre seu pai e o motivo de estar ali. Procurei nos bolsos de meu paletó e encontrei a carta que deveria ser entregue a ele, perguntei-lhe se sabia ler, respondeu que sim mas não leu, pareceu esperar que eu fosse embora pra ler na intimidade a mensagem de seu pai. Despedi-me prometendo voltar dali uma semana, com mais tempo para conversarmos. Marcamos para o mesmo lugar o encontro.
Nunca me preocupei em saber a sua idade, mas tenho a impressão de que deveríamos ter a mesma, pois em todas as lembranças que tenho de minha infância ele está presente.
Sua mãe dona Geralda foi minha mãe de leite, portanto éramos irmãos de leite. Vivíamos em uma fazenda do tamanho do mundo, e só descobrimos que o mundo ia além dos horizontes vistos por nós quando entramos na escola. Crescemos aprendendo a gostar das mesmas coisas, embalados pelas vitórias do bem sobre o mal narrado por senhor Ferreira, seu pai, um exemplo de generosidade.
Nossas famílias eram muito religiosas, não faltávamos um domingo na missa. Fizemos os catecismos juntos, sabíamos os dez mandamentos na ponta da língua e, na medida do possível vivíamos de acordo com eles.
Na infância o tempo demora mas passa, brincadeiras são deixadas de lado, desaparecem os meninos e surgem os homens, enquanto a vida vai se encarregando de iniciar uma separação. Meu amigo Dunga entrou para o coral da igreja, tinha uma linda voz de cantor de ópera , fazia parte dos "Marianos", composto por homens. Um outro coral formado por mulheres se chamava "Filhas de Maria" , foi aí que ele conheceu Nice. Dons iguais, gostos iguais, noivaram e casaram ali, na mesma igreja onde seus sonhos se encontraram. E o casamento foi lindo, ao som de cânticos dos seus colegas de coral.
O cordão de ligação que nos unia fora rompido, mas ainda existia o gostar que sempre fica nos corações de quem viveu uma grande amizade. Alguém disse que uma infância amorosa é o chão que caminharemos até a velhice. Nossas vidas seguiam por caminhos diferentes, mas sempre guiadas por valores morais fundamentadas em uma rica educação.
Logo nasceu o primeiro filho, primeiro e único, que veio inundar de alegrias não só o casal, mas todas as pessoas que os conheciam, pois sabiam como eram merecedores da bênção que os céus lhes proporcionava. Eu vivia a minha vida assistindo com alegria a vida feliz de meu amigo.
Mas um dia todos nós temos que crescer, bater asas, partir...Ele veio em minha casa, veio só, busquei em seu semblante o motivo da visita, perguntei logo pela família e ele me acalmou dizendo que Nice e o menino estavam bem, na verdade estava ali para me comunicar que ia se mudar da fazenda, tentar uma sorte melhor em São Paulo. O menino estava crescendo, Dunga já se preocupava com seu futuro, na cidade grande segundo soube, existiam escolas que ensinavam as crianças a partir dos três anos de idade, a idade de Júnior.
Despedimo-nos como dois homens chorões, dei a ele uma medalha com a imagem de nossa santa protetora, presente de minha avó para ter sorte e proteção, então ele partiu, e a distancia entre nós se tornara imensa.
A primeira carta mostrava o deslumbramento com a cidade grande e a dificuldade para se arranjar um emprego. Na segunda as novidades vieram apenas no vocabulário usado por ele, palavras novas que aprendera com o povo de lá. As cartas cada vez menos eufóricas foram escasseando, a última dizia que conseguira um emprego, trabalharia como faxineiro numa grande metalúrgica durante doze horas por dia.
Na fazenda, seguindo o curso de meu destino também atendi o chamado da cidade grande, no calendário desta época iniciava os anos oitenta...
Quando chegamos em São Paulo já tínhamos casa comprada através de parentes num bairro da capital, e apesar das dificuldades de inicio as coisas correram bem, arranjei emprego numa fabrica de cadernos e a noite fazia um curso de supletivo para completar o segundo grau. Numa tarde, após chegar do trabalho, minha mãe entregou-me uma carta , corri os olhos em busca do remetente e verifiquei que era de Dunga. Na carta ele dizia que fora promovido na empresa, agora seria guarda noturno, e apesar do trabalho ser à noite o salário era melhor, isto o ajudaria a pagar a escola particular do menino, convidou-me a visitá-lo e prometi a mim mesmo que o faria no próximo final de semana.
Dunga morava em uma vila do bairro do Jaçanã, não foi difícil encontrar seu endereço. Fui recebido com festas por Nice que correu pra chamá-lo, nos abraçamos, e um turbilhão de palavras foram ditas por nós. Ele estava feliz, as coisas melhoraram depois que começou a trabalhar a noite, Júnior estava matriculado numa escola particular perto da casa, falou com orgulho do filho, ele era inteligente e esforçado, valia o sacrifício de uma boa escola. Senti o pesar de ter que ir embora, mas ele trabalharia naquela noite e precisava descansar, minha visita não poderia se prolongar por mais tempo. Prometi que o visitaria sempre que possível.
Duas semanas após minha visita, um recado da recepcionista da empresa onde eu trabalhava dizia para que entrasse em contato com um amigo que não se identificara, mas que eu saberia de quem se tratava. Não tive dúvidas quanto á identidade do amigo, e a possibilidade de falar com ele seria através de uma nova visita.
A casa estava fechada, visinhos disseram que não tinham informações sobre os moradores, talvez estivessem viajando. Voltei outras vezes sem ter sucesso, ninguém tinha noticias deles, na ultima tentativa encontrei um grupo de mendigos que ocuparam o local depois de perceberem que ele estava abandonado. Se fosse uma viagem ela teria sido bem longa, pois durante sete anos fiquei sem notícias de meu amigo e sua família.
Reencontro
Graças a Deus eu já podia brindar o meu sucesso profissional e pessoal, o esforço e dedicação valeram a pena, sou proprietário de um escritório de contabilidade e emprego quatro funcionários, posso até dizer que "sou dono do meu nariz" . Constitui família com uma mulher dedicada, temos um casal de filhos maravilhosos e, com freqüência viajamos com meus pais para a fazenda onde nasci.
Numa tarde, no final de expediente do escritório, o telefone tocou, do outro lado alguém se identificara como sendo Dunga, duvidei, a voz era diferente, quem quer que fosse ligava de um orelhão e pedia para falar comigo, final de ficha, a ligação caiu e eu nada podia fazer a não ser esperar. O pedido era estranho, amigos não solicitam entrevistas, portas não possuem chaves para a amizade, mas quem quer que tenha ligado deveria estar vindo para o escritório. Senti medo, os funcionários tinham ido embora, pensei em ligar para a policia mas descartei a idéia, o que iriam pensar de uma pessoa que liga para a policia só porque está com medo de uma visita que pode ser de um amigo? Decidi fechar o escritório e esperar do lado de fora, um pouco afastado, onde esperava e ao mesmo tempo vigiava.
Numa esquina, sem saber de que lado ele viria, eu olhava para todos, principalmente para a porta do escritório. Alguém parou, percebendo o escritório fechado tentava olhar através de alguma fresta, olhou em torno, procurava por alguém, neste momento me aproximei e perguntei o que ele desejava.
__ "Não me reconhece?" Perguntou ele.
Era isto que meus olhos tentava naquele momento, enquanto meu cérebro indagava quem seria aquela pessoa que parecia não querer ser identificada.
__ "Podemos conversar?"
Uma ducha gelada caiu sobre meu cérebro confuso, o medo escravizava minhas palavras e eu sentia que precisava emergir daquele momento e controlar o impulso de fugir.
__ "Desculpe, eu o conheço?"
Seu rosto demonstrou um sorriso amargo, e enquanto se despia do boné que cobria sua cabeça e o dobrava com as mãos eu o reconheci, Dunga, meu amigo! Meu Deus, como estava mudado! Ninguém envelhece tanto em tão pouco tempo!
O alívio do reconhecimento me fez pedir desculpas, abri o escritório e o convidei 'a entrar, minhas atitudes formais me envergonharam, aquele homem não era um cliente, era um amigo querido, um irmão que estava distante e agora voltava. Perguntei-lhe o que havia acontecido, eu indagava com a pergunta sobre os sete anos sem notícias, a aparição repentina como um estranho, e a aparência de quem envelhecera vinte anos num período de sete. Ele olhou-me nos olhos e buscou na alma as palavras para narrar-me sua história, perguntou-me antes se eu tinha tempo e disposição para ouvi-la, pedi a ele alguns minutos para um telefonema pra minha esposa, e também para comprar café e lanches na padaria, a noite seria longa...
Depois de um cigarro, Dunga começou a contar uma história que, segundo ele, traria respostas para minhas perguntas.
__ "História de desgraças meu amigo, que infelizmente aconteceu comigo, você é livre para qualquer julgamento e, tendo você como um verdadeiro irmão, saberei respeitar o seu veredicto."
Depois de um silencio onde páginas de um passado recente são revistas ele iniciou a narração:
__"Ao escrever aquelas cartas pra você, tentei passar uma imagem de que tudo estava bem, mas a verdade era outra, eu não estava feliz. O motivo de omitir a verdade foi pensar que as coisas mudariam, e eu pudesse realmente ser feliz ao lado de minha família. Quando consegui o emprego de faxineiro na empresa onde trabalhei, eu já estava para desistir da procura e voltar para a fazenda, pois mesmo quando uma vaga existia, me era negada. A princípio pensava em falta de sorte, mas a verdade um dia se mostrou fria e cruel, sou um negro! A porta que me foi aberta não era só uma oportunidade, mas uma condição imposta para pessoas de minha cor. Até aí tudo bem, era um trabalho tão digno como outro qualquer, mas quantas pessoas você conhece que fazem este tipo de trabalho e nele encontra uma realização profissional? Por acaso conhece alguém que diz com orgulho que é o melhor faxineiro da empresa onde trabalha? Pois eu consegui dizer isto depois de me destacar entre os demais, e algum tempo depois, quando surgiu uma vaga de guarda noturno, a oportunidade de promoção apareceu, e o departamento de recursos humanos me escolheu para a função."
Neste momento de sua narrativa eu o interrompi, minha cabeça estava confusa, as respostas que eu esperava não vinham, respostas que nossa amizade exigia, como o motivo da distância e o tempo sem notícias. Dunga falava de coisas relacionadas à cor da pele, coisas que para mim nada significavam, confesso que nunca havia pensado nisto pelo simples fato de nunca ter visto a diferença, não da maneira como ele me apresentava. Para mim, somos todos diferentes, isto nos torna únicos, cada ser, cada coisa, cada cor...e este mundo de diferenças não pode ser olhado com frieza e desconfiança, pois isto nos tornaria cego diante da beleza da variedade. Foi com a clara intenção de obter minhas respostas que perguntei onde situava nossa amizade em suas descobertas, pois até então ele não demonstrava a sua importância.
Dunga compreendeu meus argumentos, olhou-me como um pai olha para seu filho inexperiente, de alguém que conhece a vida e olha para uma criança adormecida em sua inocência e falou:
__ "Eu ti conheço e por isto ti entendo. Aliás, ti conheço melhor do que a mim mesmo hoje, posso ti dizer em sã consciência que você faz parte das coisas boas que aconteceram em minha vida. A verdade é que lá na fazenda fomos iguais, não porque eu ou você quiséssemos, mas por que éramos crianças, as coisas que vieram depois não tinham como ser evitadas, fazia parte do crescimento de cada um, e se hoje eu vivo o drama do viver, você, a partir de agora viverá o drama do sentir."
__ "A propósito, sabe qual era meu apelido entre os colegas na empresa onde eu trabalhava? Era azulão, senhor azulão, pois segundo eles eu era tão preto que chegava a ser azul.
__”O gerente de produção da empresa era um homem arrogante e preconceituoso, humilhava seus subordinados e gostava de fazer piadinhas sobre os negros da empresa, dele recebi a alcunha de senhor Azulão. Este homem tinha o costume de ir á noite na empresa para o que chamava de inspeção de rotina, entrava e saia sem ao menos me cumprimentar, fazia questão de abusar da autoridade que seu cargo lhe conferia, até ai tudo bem, suas provocações jamais iriam desviar-me da conduta de tentar fazer o melhor no meu trabalho. O problema, é que ele sempre levava alguma coisa quando ia embora, confesso que tive até medo de pensar que ele pudesse estar roubando a firma, mas tudo indicava para meu desespero que era isto que estava acontecendo.
__”Eu não sabia que atitude tomar ou a quem recorrer. Deveria levar minhas desconfianças ao dono da empresa, eu, um simples empregado de fábrica, um pião como se costuma dizer? A verdade é que mesmo sem encontrar resposta para tal pergunta, não conseguia conviver com algo que para mim estava errado. Cheguei a conversar com Nice, e ela tentou me aconselhar de alguma maneira, mas só conseguiu me passar o medo que tinha de que eu perdesse o emprego. Eu não conseguia mais dormir direito, carregando o peso de minha omissão diante de algo que para mim tinha enorme gravidade, mas, como tudo na vida tem um final, com as coisas erradas não seriam diferentes."
__ "Numa noite em que cheguei para trabalhar, encontrei este gerente a minha espera, sem muita explicação me disse para voltar pra casa e comparecer no dia seguinte no departamento de recursos humanos, eu estava sendo dispensado, um outro funcionário já ocupava o meu lugar, um branco, fez questão de dizer."
Neste momento da narrativa, um profundo suspiro abandonou o peito de meu amigo, e eu percebi em seu olhar que ele estava distante, confrontando-se com algo terrível. Há sentimentos maiores que o recurso limitado das palavras, e um silencio que diz tudo, dispensando o uso delas tomou conta de mim, meu amigo percebendo este momento continuou a sua história:
__ "Conversei com Nice aquela noite inteira, sem conseguir chegar a uma conclusão que explicasse a demissão. No dia seguinte, ao comparecer na empresa, sem muito rodeio a encarregada do departamento me disse que eu estava sendo "convidado" a me demitir, motivo? Roubo! Eu não estava sendo acusado de roubo, não havia provas para isso, mas o fato é que o roubo acontecera e tudo indicava que foi no período da noite, no meu turno de trabalho. Se eu não assinasse a demissão voluntária, o caso seria levado 'a policia, já sendo acusado formalmente pelo roubo. Naquele momento senti desaparecer as chances de minha família viver num mundo melhor, mais justo e solidário."
__ "Desesperada com a injustiça e ciente das dificuldades que teríamos para sobreviver, Nice aguardou o momento em que saí de casa na tentativa de encontrar um novo emprego para ir até a empresa. Em sua inocência imaginou que contando a verdade para meu ex-patrão, as coisas seriam resolvidas, e o mal reparado. Quando retornei da procura mal sucedida de emprego, ela me contou a sua atitude. Apesar de suas justificativas eu a critiquei, e rezei para que conseqüências maiores não recaíssem sobre nossa família. Mas os meus temores se confirmariam, e naquela mesma noite, do dia que se tornaria maldito pra mim, enquanto eu contava uma história para meu filho dormir, daquelas que meu pai contava para nós dois você se lembra? Alguém bateu em nossa porta, Nice foi atender e então ouvi um grito: __ "Morra sua negra desgraçada", a seguir o estampido de um tiro, corri até a sala para encontrá-la caída, o causador daquela cena já estava longe."
__ "Meu amigo! Que Deus me perdoe pelo sentimento que nasceu em mim naquele momento, um sentimento que só no inferno é possível encontrar outro igual, ódio, de tudo e de todos, ódio até de mim, em minha cabeça uma só palavra martelava minha mente, vingança. Esqueci de meu filho, do mundo, e até de Deus, eu que jamais pensei maltratar até uma erva daninha de uma plantação, pelo simples fato dela fazer parte deste mundo do Criador, agora pensava em matar.”
__ ”Hoje! Sequer consigo explicar direito como foi possível, mas me armei de um punhal, a vingança teria que ser doida, sofrida. Fui até a empresa e esperei, como o carrasco espera sua vitima, quando o momento chegou não escondi minha intenção, me aproximei do algoz de minha nega para manchar minhas mãos com seu sangue e aplacar o meu ódio."
__ "Fui preso no mesmo local da cena do crime, não tinha nada pra esconder, apenas vinguei a minha Nice. As manchetes nos jornais do dia seguinte diziam que um homem desesperado por ter perdido o emprego havia cometido um assassinato."
__ "No meu cárcere fui um hóspede do inferno, convivendo com o pior dos piores, sem meu filho, e sem minha liberdade. Mas eu sou como uma borboleta, não está em mim viver preso, eu respiro a liberdade como elas, e ao saber que no meu cativeiro uma fuga estava para acontecer, não pensei duas vezes pra aumentar ainda mais o meu crime e então fugi. Hoje me encontro aqui, um condenado pela justiça, um fugitivo perigoso, mas com um objetivo, de alguma maneira eu gostaria de entrar em contato com meu filho, dizer a ele que sua vida vale muito, que ele é amado, e principalmente, que ele entenda que sua felicidade só dependerá dele próprio.”
__”Soube que ele esteve confinado na Febem, mas como filho de borboleta ele ama tanto a liberdade quanto eu, e por isso fugiu de lá. Gostaria que ele recebesse uma carta que escrevi, pensei em você para ser meu mensageiro, saberei entender se você se recusar, pois tem que cuidar de sua vida e provavelmente a tarefa que estou lhe atribuindo não será fácil."
Dunga encerrou sua história, mas eu demorei a recuperar-me do pesadelo vivido por meu espírito enquanto ela era narrada. Nos abraçamos, e eu solicitei seu perdão por meu julgamento errado. Propus-me a procurar seu filho, iria até o fim do mundo se fosse preciso, mas ele poderia ficar sossegado, a mensagem seria entregue. Perguntei a ele qual seria seu destino agora, e ele respondeu-me que "entre as escolhas que a vida lhe oferecia, ele escolhia viver, mas como a condição era viver livre, talvez esta fosse a ultima vez que nos encontraríamos.”
O dia estava para amanhecer e Dunga me disse que precisava ir embora, segundo ele, a luz do sol era tão danosa para um fugitivo quanto o é para os olhos de um morcego.
Cumprindo a promessa
Iniciei minha procura na tarde do mesmo dia, começando pela Fundação do Bem Estar do Menor, no bairro do Tatuapé. Defronte ao portão, encostado em um poste da avenida Celso Garcia eu olhava, tentava imaginar como seria a fuga daquele lugar , e quando ela acontecia, para onde iriam os fugitivos? Conclui que os que possuíam algum tipo de ligação como família por exemplo, retornavam pra junto dela, e os demais, deveriam se juntar com outros nas mesmas condições, formando bandos em algum lugar da cidade que oferecesse condições, de como bando, sobreviverem através de pequenos furtos ou até mesmo de esmolas.
Meninos de rua não são conhecidos por nomes próprios, geralmente possuem apelidos inventados por colegas de infortúnios, não seria nada fácil encontrar um Júnior. Foi através de uma senhora, que trabalhava no refeitório de uma das unidades que consegui a informação mais segura de encontrar o menino. Era uma senhora de aparência simpática e bastante tagarela, vi quando ela atravessou a avenida seguindo em direção ao ponto de ônibus na companhia de algumas colegas, abordei-a no momento em que ela se despedia das demais. Ela me informou que se o menino não tinha família e nem um endereço certo para ir, certamente estaria na praça da Sé, pois soubera que parte do grupo que fugiu da ultima vez se encontrava neste lugar. E foi por causa desta informação que fui até a praça da Sé, e encontrei o filho de Dunga.
Uma semana depois de meu encontro com Júnior retornei conforme o combinado, sentei-me no mesmo banco e aguardei por alguns instantes, ele apareceu e se aproximou sem que eu o reconhecesse, estava mudado, com roupas simples mas bem cuidadas, exibia um sorriso quando me falou:
__ "O senhor não me reconheceu, não é mesmo?"
Respondi-lhe com uma grata surpresa que realmente não o reconhecera. Ele sentou-se ao meu lado, e me entregando a carta que seu pai lhe havia escrito me disse:
__ "Gostaria que o senhor lesse, isto mudou a minha vida e a maneira de eu encarar o mundo."
Abri o envelope com cuidado, sabia que aquela carta era a maior riqueza que o menino possuía naquele momento. Escrita com letras grandes e bem feitas, a mensagem dizia o seguinte:
"Filho, quero que saiba que você é fruto de um amor entre duas pessoas que tinham um único sonho na vida, lhe dar uma vida digna, uma vida de respeito, uma vida de amor. Quis o destino tornar impossível a realização deste sonho por nós, mas se foi impossível, não deixou de ser um sonho. Peço-lhe filho querido, como alguém que ti ama com toda a força possível num sentimento, realize este sonho por nós, seja um homem de bem. Esvazie seu coração de toda mágoa e de toda dor que ele contem, para que sobre espaço para o amor e a fé em Deus. A vida não lhe será fácil, mas siga em frente, aprenda com as experiências que os obstáculos vão lhe proporcionar, para que no futuro você sinta orgulho de tê-los vencido."
Quando terminou de falar, Júnior tirou de seu bolso uma caixinha que me entregou dizendo que eu sabia o que ela continha, pediu-me que em caso de ainda encontrar seu pai que lhe devolvesse, pois ele precisaria mais de sorte e proteção do que o menino agora. Abri a caixa e verifiquei que era a medalha que um dia eu dera a Dunga. Devolvi-lhe a carta e ele se foi, como um homem que vai para a luta com a certeza de que será um vencedor. Observei-o enquanto se afastava, meu coração doía, mas era uma dor agradável, se é que existe algo assim, eu estava triste porque uma história de amizade acabava ali, mas ao mesmo tempo assistia a mudança de um menino perdido para um menino com objetivos.
Dunga estava cansado, a policia o localizara e o perseguia. Enquanto teve forças ele fugiu, correu por ruas, desceu e subiu ladeiras, até que chegou em um morro ali pelos lados do bairro de Guaianases. Cansado de fugir ele se deitou sobre a relva, dava para ouvir os cães da policia latindo próximo, a hora de reagir estava próximo, olhou para o céu e avistou pequeninos seres que voavam em sua direção, eram azuis, mais azuis que a imensidão do infinito, seriam anjos?
Não!
Eram borboletas.
Borboletas azuis...
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