segunda-feira

IMPAVIDUM FERIENT RUINAE


Uma homenagem aos amigos piauienses.

Meus pais foram deixados para trás, os amigos e parentes espalhados pelo sul, mas a miséria, esta fez questão de estar sempre comigo.
Resolvi dar um basta pro destino, das rédeas agora cuidaria eu. Se alguma coisa está acontecendo no mundo certamente é bem longe daqui.
O que era meu coube num saco que amarrei a boca, joguei nas costas e, me desembestei por este mundão. Meu cachorro queria vir comigo, não deixei, onde um vira-latas come falta comida pro outro. Beijei pai, beijei mãe, pedi a benção e parti sem destino, pra onde a estrada me levava.
Só conhecia meu buraco natal e seus arredores, mas tinha consciência de que o mundo era redondo e grande, caminhava descalço, minhas botinas não ia durar nada neste chão seco e duro destas bandas de sertão.
Cruzava com andantes e perguntava o nome das terras onde pisava, queria evitar andar em circulo. O objetivo era seguir sempre em frente, desconfiava que minha sorte estava distante, numa linha reta e comprida. Caminhava durante o dia e dormia durante a noite, meu travesseiro era o saco de pertences e a luz do luar o cobertor. Na roça de Deus eu me alimentava, comia jambo, estraçalhava os ingás pra comer suas sementes, e bebia água da raiz do umbuzeiro. Mas eu sonhava, sonhava com riquezas, ou pelo menos com a sorte de quem luta para ter vida melhor.
Três dias de caminhada e topei com uma vila, deveria ser dia santo pois estava acontecendo uma procissão. Procissão de miseráveis, a maioria andava descalça como eu, e pela quantidade de pessoas, a vila toda deveria estar ali. O andor carregado por quatro homens transportava um santo magro e silencioso, que prestava atenção nos cânticos em sua homenagem. Resolvi acompanhar a procissão, sentia fome, um sacrifício em troca da recompensa de forrar o bucho, tinha a esperança de que o final da caminhada terminasse em festa, na igrejinha que já podia visualizar. Resolvi me fazer merecedor, corri até o andor onde escolhi o mais fraco dos carregadores que de bom grado me cedeu o seu fardo. O santo era magro mas pesado, e debaixo de um sol de esturricar chifre, até ele transpirava. Chegamos na porta da igrejinha e o milagreiro pesava ainda mais, cheguei a puxá-lo porta adentro, mas ele parecia não querer entrar. Não queria e não ia entrar. Um dos carregadores me cochichou:
_ Irmão, assim você nos mata, o santo não vai entrar aí!
Também cochichando perguntei:
_ Mas se ele não vai entrar na igreja, para onde o estamos levando?
_ Para o morro da penitencia, hoje é o dia em que vamos para o monte junto ao cruzeiro e oramos o dia todo em jejum. Olhei para os lados a procura de alguém para ceder meu lugar, mas ninguém se aproximou, tornei a falar com o irmão carregador.
_ Irmão, este monte ainda está longe? Eu sentia meu corpo tremer e as pernas bambolearem.
_ Não! É aquele com uma cruz. Respondeu ele apontando com os beiços em forma de bico. Olhei na direção indicada e percebi que a cruz era pequena, tornei a olhar e constatei que a cruz era pequena por causa da distancia que era grande. Busquei socorro no santo, mas ele permanecia mudo e sério. Fiquei curioso, achei que tinha pelo menos o direito de saber quem era aquele santo que eu carregava morro acima, e sabedor de que ele não se apresentaria tornei a incomodar meu irmão perguntando a graça do homenageado. Aborrecido por ter que ficar falando enquanto fazia sua penitencia, ele murmurou:
_ São Horácio, o protetor dos famintos! Não comentei nada, mas não pude deixar de pensar que com tantos santos protetores pra carregar, eu tinha que topar logo com o protetor dos famintos.
No pé do morro eu já sentia vertigens, achava uma boa idéia desmaiar naquela hora, um velhinho que nos alcançou olhou com pena o meu sofrimento, aproveitei pra pedir:
_ Irmão, por acaso o senhor não gostaria de purificar seus pecados tomando meu lugar? Ele balançou a cabeça querendo dizer não e diminuiu os passos, ficando bem longe de mim.
Não sei de onde tirei forças, mas a verdade é que mesmo cambaleando consegui chegar aos pés do cruzeiro. Depositamos nosso fardo sobre uma pedra onde seria o altar improvisado para a celebração, uma cantoria se iniciou entre a multidão misturando pedidos e lamentações. Como meu mal era fome e sabedor de que "daquele paiol não saia milho", fiz o sinal da cruz e me retirei. Quando descia o morro dei uma olhada em direção ao santo, acho que já estava delirando pois o santo piscou pra mim.
Fora do vilarejo deparei com uma plantação de melancias, enormes, no ponto de colheita, não me fiz de rogado, libertei três dos talos e caí de boca, seguiu-se um grande arroto e deixei-me envolver pela sonolência que tomou conta de mim, mas antes, agradeci São Horácio por matar minha fome. Acordei com a sensação de que acordava pra morrer, um vulcão na barriga entrava em ebulição, e eu descobri naquele lugar a importância das moitas. Aproveitei o incômodo pra devanear. Dias de caminhada e minha sorte não dava sinais de estar próxima, nem santo se interessava por minha causa, mas de uma coisa eu tinha certeza, em minhas veias corre sangue piauiense, eu faria meus milagres.
O sol queimava meu rosto quando acordei no dia seguinte, sentia a fraqueza de ter comido três melancias e devolvido cinco. Andei de má vontade, com a impressão de que passar fome em nosso ninho é melhor que longe dele. Avistei poeira me perseguindo, logo o barulho de patas de mula carregando peso se aproximou, passava por mim quando parou e o carroceiro gritou:
_ Hei! Pagão! Apesar de estar olhando pra mim, tive dúvidas quanto a sua intenção de falar comigo.
_ O senhor está falando comigo?
_Claro! Com quem mais poderia ser? Vê, tem mais alguém aqui? Tive a impressão de estar falando com um doido, por isto tomei cuidado com as palavras.
_ Desculpe senhor, é que meu nome não é pagão, é Ciço, de Padim Ciço.
_ Grande merda...
_ Como?
_ Nada, mas pra onde está indo o Ciço, de Padim Ciço?
Respondi que estava indo atrás de minha sorte, mas não sabia se estava na direção certa. Ele soltou uma gargalhada e me disse pra subir na carroça, pois estava indo para o mesmo lugar.
Desconfiava cada vez mais daquele sujeito, mas resolvi aceitar o convite, tava com uma baita preguiça de caminhar, mas ficaria de olho aberto.
O sacolejar da carroça, o calor, o barulho compassado e monótono das rodas sobre o chão me fizeram pegar no sono. Acho que dormi uma semana, acordei na sombra de um pé de Ipê, sentindo o aroma do café que o carroceiro preparava. Ao me ver acordado ele gritou:
_ Hei pagão, tá com fome? Eu já ia lembrá-lo de que meu nome não era pagão quando a visão de ovos mexidos no fogão improvisado me calou. Minha boca salivava tanto que eu chegava a babar, e o carroceiro dava mais uma de suas gargalhadas.
Enquanto comia eu percebia ele me observando, depois começou a falar sobre o motivo da gente estar parado ali. Disse que eu havia pegado num sono tão pesado que achou melhor parar a carroça pra que eu não caísse dela. Falei pra ele que meu cansaço era fraqueza, falei das melancias e da dor de barriga, e aproveitei pra falar mal de São Horácio, pois achava que a culpa de tudo era dele. O carroceiro se contorcia com suas risadas, e eu tive a confirmação de que ele realmente era maluco.
Depois de algum tempo ele disse que era hora de pegarmos estrada, colocou um chapéu meia lua na cabeça, e dois iguais nas mulas, com a diferença de que os delas tinham buracos de passagem pras orelhas.
Enquanto fazíamos nosso trajeto minha mente curiosa incomodava, já me preparava para fazer algumas perguntas quando a carroça saiu da estrada em direção a uma choupana. Sem esperar ser interrogado, o carroceiro disse que íamos fazer uma visita, já éramos esperados na porta do casebre por um casal rodeados de miséria, cumprimentaram o carroceiro chamando-o de curador. O carroceiro pediu pra eu pegar um pacote na carroça, e pela primeira vez eu pude entrar em contato com o mundo que lhe pertencia. Quando entrei pela abertura do encerado que servia de porta, um universo se apresentou diante de mim, feito de vidros e saquinhos, com pós e folhas de tudo quanto é tipo de ervas, tudo etiquetado e identificado. Pendurado na parede de lona, um quadro escrito numa linguagem que eu não compreendia dizia:
IMPAVIDUM FERIENT RUINAE
Encontrei o pacote que me fora pedido e voltei para o casebre onde era esperado com certa impaciência. Nos dirigimos até um dos quartos da choupana enquanto ele dizia para o casal que o problema dos meninos era vermes. No pacote que ele entregou pra mulher continha dois pares de alpercatas que, segundo ele, as crianças só deveriam tirar dos pés pra dormir. A visão dos meninos jogados em um velho sofá que lhes servia de cama me provocou mal estar, estavam largados, sem forças até para ver o mundo com seus olhos afundados num rosto pintado de amarelão. O carroceiro foi até a carroça de onde voltou com alguns saquinhos de ervas e colocou água pra ferver. A seu lado eu observava seu olhar compenetrado e seu jeito agora sério na maceração das ervas. Enquanto ele amaçava as folhas de genciana, hortelã, mentruz e tomilho, pra colocar na água, seu rosto me fazia lembrar de alguém que eu conhecia mas não conseguia saber de quando nem onde.
Depois dos meninos engolirem a beberagem, o carroceiro, agora curador, entregou para os pais um papel com uma formula, também lhes deu alguns saquinhos com poejo, quássia, sementes de abóbora e brotos de samambaia para que o tratamento tivesse prosseguimento. Aceitamos uma caneca de café mais parecido com água de batatas e nos despedimos, sem que o curador recebesse um tostão pela visita.
Desta maneira meu caminho até minha sorte foi se demorando, com paradas aqui e ali, onde houvesse alguém pra ser curado ou até mesmo pra receber algumas palavras de animo. Em um vilarejo ficamos o dia todo visitando casas, o curador me entregou pra ler um caderno que ele chamava de glossário, onde estava exposto todo seu conhecimento no trato com as ervas. Fiquei horas lendo e relendo as formulas escritas por ele, tudo muito claro e organizado, com palavras e nomes que eu sequer imaginava que existiam. Com muita paciência ele colocava luz sobre a minha ignorância relativa aos medicamentos da farmácia natural, começava assim meus contatos com os antissépticos que limpam infecções, os colagogos que expulsam a bílis do fígado, os hemostáticos contra hemorragias, os vulnerários para curar feridas, etc. Eu estava fascinado com todo aquele conhecimento adquirido através do tempo e as possibilidades oferecidas pela natureza. Presenciar estes conhecimentos sendo colocados em prática pelo curador, e ver os resultados nos agradecimentos daqueles que eram curados, era algo fascinante pra mim.
De volta pra estrada comecei o interrogatório, queria saber como ele sobrevivia, porquê curava de graça, se era feliz, se valia ‘a pena viver entre miseráveis que tinha que socorrer, enfim, eu quis saber se ele teve outras escolhas para seu destino. Depois de remexer suas memórias ele me disse que todos nós temos escolhas. Na minha idade ele também pensou em ir embora, buscar sua sorte em outras terras e deixar para trás aquela vida de carências. Mas quando olhava o que deixaria para trás, seu coração se amargurava vendo a luta de seu povo pela sobrevivência. A falta do mínimo para ter saúde, para ter educação, alimentação, enfim, uma vida digna, mesmo que simples. Isto era o que ele abandonaria, seu povo sofrido mas teimoso em viver. Quanto ‘a felicidade, ele a conheceu no primeiro minuto em que decidiu ficar entre os seus e enfrentar com eles as dificuldades, porquê acreditava que elas podiam ser vencidas, a isto ele chamou de fé, algo que nosso povo valente possui com sobras. Sua sobrevivência era suprida pelos que podiam pagar, porque doença não escolhe só a pobreza pra existir.
As palavras do curador penetravam meu ser como cupins penetram as entranhas da madeira mais resistente e provocava abalos nos alicerces do meu destino. Com dificuldades para expressar os sentimentos que se apossavam de mim, eu lhe disse que gostaria de viver como ele. O curador soltou uma gargalhada que ecoou por toda caatinga e cerrados da região, neste momento eu senti medo do poder das palavras que acabara de lhe dizer.
Três meses passamos juntos para me dar conta de que minha sorte, cansada de esperar por mim, veio ao meu encontro. E neste mundo redondo e grande, as paisagens se repetiam, os lugares eram reconhecidos, eu estava voltando. Reconheci a plantação de melancias e paramos na entrada do vilarejo onde carreguei São Horácio em vão, o curador desceu da carroça e disse que iria ficar por ali, estranhei, mas ele, dono das respostas, relatou o final da história.
_ Agora que você encontrou sua sorte e está preparado pra ela, já pode se virar sozinho, siga o glossário, renove o estoque e, quanto a seu espírito, se ele fraquejar, lembre das palavras escritas naquele quadro. Eu lhe disse que lembrava das palavras mas não sabia o significado. Ele disse que elas significavam o lema de nosso povo:
IMPAVIDUM FERIENT RUINAE significa:
AS DIFICULDADES NÃO ME AMEDRONTAM.
O curador se afastou deixando em minhas mãos as rédeas da carroça e do meu destino, mas antes do desaparecimento ele me olhou pela última vez e piscou pra mim, neste momento eu tive a certeza de quem era ele.
FIM

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